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COVID-19: iniquidades e vacinação

Uma pessoa com mais de 80 anos, sem comorbilidades, infetada com SARS-CoV-2, que resida num país de baixo rendimento tem 5 a 6 vezes maior risco de morrer por COVID-19, comparando com uma pessoa com o mesmo sexo, idade e número de comorbilidades residente num país de alto rendimento. Nos países de baixo rendimento as pessoas infetadas têm maior risco de ver agravada a situação de pobreza em que vivem e as medidas de controlo da disseminação infeção têm fragilizado a economia e o tecido social destas, já frágeis, sociedades. Apesar disso, nos países de baixo rendimento menos de uma pessoa em cada 10 recebeu uma dose de vacina contra a COVID-19. Em Portugal 7 em cada 10 pessoas estão completamente vacinadas.

É sabido que, pela sua forma de transmissão, a infeção por SARS-CoV-2 ocorre mais frequentemente em meios sobrelotados, com menor capacidade de ventilação e condições de higiene. A dificuldade de manter o distanciamento físico aumenta o risco de infeção e a impossibilidade de as pessoas se isolarem, incluindo a impossibilidade de os trabalhadores se ausentarem do local de trabalho, impede a quebra das cadeias de contágio e aumentam o risco de infeção.


Sabemos, assim, que as pessoas com menor rendimento - habitualmente aquelas com menores níveis de escolaridade - têm maior risco de infeção por SARS-CoV-2. Ainda, estas pessoas tendem a ter maior risco de sofrer consequências mais danosas para a sua saúde: a menor literacia em saúde, a malnutrição e/ou obesidade, o consumo de tabaco, a exposição ambiental a poluentes e a exposição crónica a níveis elevados de stress, assim como o pior acesso a cuidados de saúde, levam a uma concentração de doenças cardiovasculares, diabetes, doenças pulmonares e doenças concológicas nestes grupos, as quais os colocam em maior risco de morbi-mortalidade por COVID-19. A perda de produtividade durante a doença aguda ou devido às suas sequelas, ou a perda de um elemento do agregado familiar coloca, consecutivamente, um maior risco social e económico para as estas pessoas e para o seu agregado familiar.



Estas iniquidades são observadas não só localmente, mas sim também entre países. Países de baixa renda tendem a ter uma maior proporção da população que vive e trabalha em condições que favorecem a transmissão de SARS-CoV-2. Nestes países, não só a transmissão decorre agilmente, com valores de incidência que apenas não são mais elevados pelas limitações no diagnóstico e no rastreio de contactos, como as consequências para a saúde são mais frequentes.


O pior estado de saúde e o escasso acesso a cuidados de saúde adequados – com exceção de pequenos grupos pertencentes às classes mais altas - aumentam o risco de doença grave e de morte. Os países de baixa renda têm um maior número de mortes por COVID-19, entre os infetados, mesmo ajustando para sexo, idade e níveis de cuidados de saúde. Ainda que a letalidade possa em parte ser explicada pela baixa testagem de pessoas pauci ou assintomáticas, as diferenças são marcadas: uma pessoa com mais de 80 anos, sem comorbilidades, infetada com SARS-CoV-2, que resida num país de baixo rendimento tem 5 a 6 vezes maior risco de morrer por COVID-19, comparando com uma pessoa com o mesmo sexo, idade e número de comorbilidades, residente num país de alto rendimento. As pessoas infetadas têm maior risco de perder rendimentos e agravar a situação de pobreza em que vivem, o que agrava o seu bem-estar social, mental e físico.


Nos países de baixo rendimento, até à data (31 de agosto de 2021) menos de 2% da população recebeu uma dose da vacina contra a COVID-19, menos de uma pessoa em cada 10. No entanto, em Portugal 7 em cada 10 pessoas estão completamente vacinadas. Estas discrepâncias não se devem a hesitação vacinal, receios sobre a segurança ou efetividade da vacina, ou até a diversidades culturais, mas ao facto de os países de baixo rendimento não terem sequer acesso a vacinas.


As pessoas que vivem nestes países não só têm pior estado de saúde e piores condições de vida, maior risco de se infetar ou morrer por COVID-19, mas também menor acesso à tecnologia que os protegeria contra a infeção e a doença. Estas vacinas permitiriam poupar anos de vida saudáveis perdidos pela COVID-19, e reduzir parte da incidência da infeção, o que permitiria aliviar algumas medidas mais severas de controlo da disseminação da infeção que têm fragilizado algumas destas sociedades. Como exemplo, estima-se que 77% da população da Etiópia, Uganda, Malawi e Nigéria – 256 milhões de pessoas – poderão ter sofrido perdas de rendimento ao nível do agregado familiar desde o início da pandemia.


Urge, assim – seja por um dever ético e moral de querer poupar vidas, seja pelo interesse egoísta de querermos prevenir a proliferação de novas variantes em contextos onde a transmissão ainda ocorre de forma muito ágil – pensar na estratégia de vacinação contra a COVID-19 para proteção da nossa população, mas também além-fronteiras, e assegurá-la. Até lá, falhamos moral e tecnicamente: alimentamos este hiato “grotesco” de mortes e morbilidade onde estas poderiam ser poupadas, e facilitamos o surgimento de novas variantes que poderão ameaçar o tão congratulado sucesso da vacinação dentro de portas.



Teresa Leão

Médica de Saúde Pública e perita no Conselho Nacional de Saúde

Investigadora no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto

Professora auxiliar convidada na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

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